quinta-feira, 27 de maio de 2010

Morre um delegado, nascem algumas reflexões

É desumana essa mania que algumas pessoas têm de superfaturar em cima de um caso, de uma notícia, espremer pra ver se sai o que não tem. O assassinato do delegado Clayton Leão, de Camaçari (BA), cidade vizinha a Salvador, é a “bola da vez”. A primeira decepção ao ler os principais jornais, sites e blogs que noticiaram sobre o trágico caso é perceber o despreparo de muitas fontes, a maioria delas de entidades / organizações oficiais ligadas à polícia. Muito fácil - e cômodo - dizer que a segurança pública está mal, que o governo não dá a atenção devida aos policiais, que esta tragédia reflete o descaso das autoridades etc e tal. Isso qualquer um pode fazer, sem esforço algum. Quero ver, meus amigos, vocês proporem soluções, mostrar caminhos que sejam capazes de extinguir a violência em quatro, seis ou dez anos.

Fico aterrorizado quando ouço alguém dizer que a situação está tão delicada que até a própria polícia está sendo vítima. E daí? É o mesmo ponto de vista que diz que ladrão é negro e vem das periferias? Quero ver essa discussão também quando um policial que deveria zelar pela segurança e promover a cidadania se envolve em corrupção, maltrata um cidadão porque a cor da sua pele é escura, não lhe garante o direito de fala porque sua origem é pobre, da favela.

Ninguém, absolutamente, se propõe a fazer uma análise mais coerente do ocorrido, pensar que a violência só poderá ser exterminada de forma sistemática, porque demanda um processo dinâmico de investimento em educação, emprego, saúde, lazer... Mas esse tipo de discurso, de entrevista, não dá ibope.  Então as pessoas espetacularizam mais uma tentativa de assalto com vítima como se fosse o primeiro da história, pelo fato de se tratar de uma autoridade policial, e tiram proveito pessoal e político da história.

Não quero com isso dizer que barbaridades são normais, nada disso. Quero apenas ver seres pensantes, que contribuam de alguma forma para o combate à violência, de todos os tipos, que tenham a capacidade de entender a dimensão do problema e que esse tipo de violência não nasceu apenas nos últimos anos. Procurar culpados não funciona.

O que me preocupa - e essa precisa ser a preocupação de todos - é como a criança que hoje nasce de uma mãe-criança será educada; quais serão suas referências de valorização da vida. Preocupa-me como combateremos o racismo, que tanta indignação e revolta causa nos corações de tantos seres humanos. A mudança não é simples. Construir um futuro mais pacífico requer, antes de tudo, amor pelo próximo. Respeito. Atitudes simples podem fazer uma grande diferença. Perca, ou melhor, ganhe vosso precioso tempo conversando com um menino que hoje ainda brinca inocentemente; seja solidário com as pessoas, como puder. Seja prudente nas suas palavras, nas suas ações. Contribua com a construção de um mundo melhor. Se combater a violência dependesse apenas de governo,  países que historicamente são considerados excelência em modelo de gestão estariam isentos destes acontecimentos. Pense nisso enquanto ainda há tempo. Pense nisso enquanto seu filho, seu irmão ou vizinho ainda pode aprender as coisas boas, a importância da vida e da valorização do ser humano.

Josevaldo Campos

domingo, 16 de maio de 2010

A metáfora de Dunga

Eu sempre defendi que os melhores jogadores de futebol em campo são aqueles que ainda vislumbram um universo para conquistar. Os famosos, embora experientes, passaram da fase do “vale tudo”, da fase futebol-com-o-coração. Ronaldinho Gaúcho e Adriano ficaram de fora da lista para o Mundial em junho. Então se você me perguntar: “Mas e o Robinho”? Certo, Robinho também parece já ter alcançado o topo da fama, reconhecimento internacional, mas não dá para comparar a vontade de jogar, de vestir a camisa da Seleção, de Robinho com o Gaúcho, por exemplo. Neymar? Dunga foi prudente. Montar uma equipe para disputar um campeonato internacional não é tarefa que se faz em poucos meses e nem se decide de um dia para o outro. É um trabalho longo, de testes e mais testes. Como têm dito os vários técnicos Brasil afora, “em 2014 ele joga, será a vez dele”.

A decisão de Dunga é muito coerente. É uma lição não só no futebol, mas para a vida. Sem estrelismo e amadorismo, sem falsas-modéstias. O que está em jogo é um trabalho de equipe, resultado de um esforço construído dia após dia, metodologicamente. “Eu tenho que ganhar hoje. A cobrança em cima de mim é hoje, não para 2014”, resumiu dunga durante a coletiva que anunciou o nome dos 23 integrantes que defenderão a Seleção Brasileira de Futebol.

Sorte Dunga, sorte Brasil!

Josevaldo Campos

sábado, 8 de maio de 2010

PERFIL - Perinho Santana, o poeta que constrói livros nos muros de Plataforma

Marcamos de nos encontrar às 14h30, no mais tardar às 15. Apareci nas proximidades onde ele mora e caminhei sem uma direção muito certa, tentando identificar alguma pista que indicasse onde ele morava. Nunca o tinha visto antes. Aproximava-se das três horas da tarde e o sol estava muito forte. Tinha medo que eu me atrasasse para nosso encontro, tão bem re-confirmado por ele no dia anterior. Ele havia me telefonado, do seu próprio celular.

Continuei andando, na esperança de encontrar algumas de suas marcas pelos muros. Ele não é tão conhecido onde mora. "Você vai direto e pergunta ali naquele bar que eles sabem te informar melhor". Segui as pistas, sentindo que estava cada vez mais próximo. Notei que meu coração estava acelerado um pouco além do normal para um fim de tarde de sábado ensolarado. Identifiquei um centro social que ele havia dado como ponto de referência. Estava chegando a hora. "Antes de passar o segundo quebra-molas, à direita, tem um beco. Ele mora ali".

Assim fui informado no bar, cujas paredes estavam decoradas com muitas poesias. Chegaria atrasado para o nosso encontro, com certeza. Pelo menos podia me desculpar, dizendo que perdi um longo tempo tentando encontrá-lo. Não tive coragem de ligar e dizer que eu estava perdido. Entrei no beco e logo perguntei a uma garota se ela o conhecia. Caminhei, tenso, na direção indicada. Sentado numa janela mal acabada, barba mal conservada, estava um senhor, aparentando 50 anos. Hesitei em lhe falar e segui, lentamente, sem rumo. Voltei. Não era ele. "Ele mora ali, naquela última casa".

Foi assim que conheci Péricles Bonfim de Santana, conhecido como Perinho Santana, o poeta que escreve seus pensamentos nos muros sujos e que ganham vida pelas ruas de Plataforma, bairro popular da grande cidade de São Salvador.

Quarenta e seis anos, olhar cabisbaixo e cansado. Perinho escreve poesias nos muros do bairro onde mora desde 1999. Ele tinha uma lanchonete e precisava mudar os preços expostos na parede todos os meses. Resolveu ir além dos números e começou a escrever seus pensamentos e sentimentos. "Eu pegava e fazia umas poesias e mandava as pessoas fazerem os desenhos; na época, eu não sabia nem pintar".

Suas poesias falam de coisas que existiam no passado, de seus amigos, das pessoas que moravam no bairro, da localização e da importância de Plataforma para a Independência da Bahia, de ecologia... "Eu procuro contar uma história verdadeira que eu próprio posso explicar a uma pessoa que venha a mim", esclarece.
Perinho é um homem simples, muito simples. Vive numa pequena casa de três cômodos, no final de um beco, localizado numa rua que ele parece ter escolhido a dedo: Rua Rosa dos Reis. Tem uma sala que serve de cozinha e um quarto que também serve de sala. Nas paredes, uma mistura de cores e palavras dá vida ao ambiente, todo decorado com poesias e pinturas dele.

Ele sabe, como ninguém, viajar nas ideias. Roda o mundo em minutos e sempre aterrissa na religião. Nasceu no dia 24 de dezembro, cinco minutos antes de Cristo. Mas é ateu e tem pavor ao cristianismo. "Hoje, se eu fosse buscar uma religião, era para procurar o calor humano, as pessoas que não bebem, não fumam... O bar é a igreja dos católicos".
Perinho tem profunda mágoa e decepção dos tempos em que frequentava a igreja católica. As milhões de dúvidas que rondam sua cabeça, segundo ele, deveriam ser explicadas pelos ortodoxos. "Desde menino que as pessoas falavam assim: 'as palavras de Deus', e eu dizia: Ah, se eu não conheço as letras de Deus, como vou conhecer as palavras de Deus?"
Essa dúvida fundamentaliza uma de suas principais teses. Perinho acredita que a letra "D" foi santificada e que as demais foram amaldiçoadas. É como se a humanidade trabalhasse apenas com essa letra: Deus, dinheiro, dívida, débito, dor, desastre. Ele também acha que o nome de Deus deveria ser ALA, sem a letra "H". Por quê? Segundo ele, dentro da letra "L" há uma letra "A". "Veja as palavras que estão debaixo da letra A: alegria, amor, anjo, altura..." E continua: "A=1; L=11, logo, precisou-se de apenas um número para formar o nome de Deus", conclui.

Perinho Santana não tem mais que 1,65m, ostentado num corpo aparentemente magro e frágil. Tem uma voz calma e, apesar de acreditar que quem pensa em Deus pensa em eternidade, coisa que ele não quer, acredita no Homem. "Deus é uma pessoa única, que só cria coisas únicas, que não tem filhos e que não aparece para nós". Perinho tem um filho de vinte anos. Já fez um livro nas paredes de Plataforma: 314 páginas. Sente não ter registrado em papel todas as poesias escritas, pois muitas delas já foram apagadas ou pinchadas dos muros.

Infância, presente e futuro - Pergunto-lhe se o Perinho criança era um aluno exemplar, bom em português, e ele, sem pestanejar. "Eu, como estudante, era bastante inteligente. Eu já lhe digo isso porque não é pela inteligência em si, é pelo esforço que eu fazia para estudar. Eu era bem mais destacado em química e matemática. Eu me formei em química, na verdade. O português eu não era muito chegado, não. Eu tinha um professor, Afonso, e era aquele cara que trabalhava mais na base do exercício, depois corrigia. Eu tive uma professora na sexta série, de português, que eu gostei muito, ela me desenvolveu muito com advérbios, com verbos, e aí minha linguagem ficou extensiva", lembra.

Perinho, além de não se identificar muito com o português, nunca leu clássicos da literatura brasileira ou estrangeira. Apenas agora tem lido alguns de filosofia, área em que pretende se aprofundar. "O último livro que eu li foi O Mundo de Sofia", acrescenta, mas sem o orgulho de ter lido um dos maiores clássicos da literatura.
A razão para ele nunca ter lido, além de não ser chegado em leitura, era porque não queria que nada o influenciasse, pois tudo tinha que vir de sua cabeça. Essa também é a razão pela qual ele nunca escreve sobre o que as pessoas pedem ou falam. E não é que tem rendido? Assobiando Pelos Caminhos de Plataforma. Esse é o nome do livro de poesias que está montando, por enquanto, em seu caderno de anotações para depois, quem sabe, ser publicado.

Perinho Santana, ao contrário de muitos poetas e artistas que buscam um local específico para a inspiração, não tem frescuras. "Às vezes eu estou na rua e vem aquela frase e eu fico doido pra saber qual é o texto; então, quando eu chego em casa, vou escrever". Além de poeta, Perinho é pintor. E não gosta de tinta. Quando acaba um desenho, vai para casa correndo, sem olhar para trás, para lavar as mãos e tomar um banho; depois volta ao local do desenho e fica olhando, como se fosse alguma pessoa que estivesse simplesmente passando e resolveu admirar.

O poeta dos muros é um homem de muitas teses. Só concluiu o segundo grau, mas é um rapazinho de idade muito prendado. "Olhe, não se perca, não, porque eu sei é de coisa", aconselha-me com um sorriso longo, triste e cansado, logo após concluir uma de suas palestras, na qual defendia que o homem aprendeu a falar a partir dos animais, "miau", "au, au" e depois foi se lapidando.

As pinturas que Perinho faz para ilustrar suas poesias sempre envolvem a natureza. Algumas constituem verdadeiras obras abstratas. Alguns de seus trabalhos falam de Deus, apesar de tudo. E não terminam suas teses, suas teorias sobre a vida do criador. "Você ouve todo mundo falar: antes de Cristo e depois de Cristo. Cadê o meio de Cristo? Como é que pula do A pro D? Cadê o MC?"

Perinho mora sozinho há muitos anos e é divorciado. Teve uma depressão neurótica quando trabalhava com computadores. Pretende, em breve, mudar-se para o bairro do Bonfim, para morar com a mãe. Apesar de todo o talento, não pretende ganhar dinheiro com o seu trabalho. Não gosta de escrever por obrigação, diz.
Certa vez, conta, ficou de fazer um trabalho para a Caixa Econômica, mas que não ficaria com o dinheiro. "Eu investia tudo em tinta", disse.

Perinho é um ser humano, humilde. Muito receptivo e educado com quem se achega ao seu simples lar. Mostrou-me uma frase no banheiro que, ironicamente, agradece a visita ao local. Fui apresentado a toda a sua residência, num processo que não demorou muito. As poucas paredes que existem são repletas de poesias e pinturas. É como estar dentro de um livro multicolorido.

Perinho Santana, o poeta da natureza, da vida, da saudade de seus amigos, dos heróis que Plataforma já teve, escreve para os mais jovens, como faz questão de sempre dizer. O poeta dos muros ia até ganhar uma praça com seu nome, mas acabou ficando no nome de um senhor que havia falecido, a pedido do próprio Perinho. Pergunto-lhe sobre o reconhecimento de seu trabalho e ele cita uma placa de mérito cultural que ganhou. Ele não liga muito para essas coisas, pensei, e logo confirmei. "Eu escrevo para contar para os mais jovens tudo que eu vi", reforça.
"É tão bom você pegar uma parede toda suja, trabalhar e trabalhar... depois as pessoas passam e vêem uma frase...", orgulha-se.

Confesso que não pude fugir do clichê. - "Quem é Perinho Santana?"
"É uma pessoa humilde, que mora em Plataforma, o mesmo de sempre, que é parabenizado por uns pelo trabalho que faz e por outros é tratado como doido". Encerrei a gravação. O coração antes acelerado pela ansiedade do encontro agora cedia lugar a uma admiração gostosa. Suas palavras contavam muito mais do que a história de um homem-artista.

Senti que ele era muito frágil quando apertei sua mão. Eu tinha de ir. Ele, gentilmente, acompanhou-me até a saída. O céu estava escuro. "Vai chover", arrisquei, sem querer ir embora. Mas ele estava preocupado comigo. Apertamos novamente as mãos e ele me agradeceu, antes mesmo que eu o fizesse. Segui. Foi assim que conheci Péricles Bonfim de Santana, um poeta que escolheu os muros das ruas como páginas de seus livros.

"Na minha terra tem palmeira
Onde o trem passa por lá
De frente para a Ribeira
Havendo divisa com o mar".
Perinho Santana

Perfil produzido em 2008 para um trabalho da faculdade