sexta-feira, 30 de abril de 2010

A fé que remove montanhas é a mesma que arrecada moedas?

Ainda meio sonolento, acordei com o barulho da sua voz. Ele falava da época em que entrava nos ônibus para assaltar, para matar, pegar as coisas das pessoas. Suas palavras oscilavam entre coisas boas e ruins. Foi assim a maior parte de minha viagem, num desses dias quase monótonos de ida para o trabalho. Quando acordei (detesto que interrompam meu sono, mesmo que no ônibus), ele já pregava o evangelho segundo... Segundo ele mesmo, na maioria das vezes!

Na medida em que ele ia explicando sua história passada, marcada por delitos, evocava o nome de Deus e intimava as pessoas a concordarem com as palavras bíblicas, narradas com um português ainda depreciado pela vida mundana. As pessoas, meio perplexas, não sabiam muito o que fazer. “Levanta as mãos aqueles que acham que Deus merece”, dizia ele, entoando a voz. “Levanta as mãos pessoal”, insistia, já praticamente gritando, ao perceber a falta de atenção das pessoas. “Tem homem aqui que levanta as mãos até pra bater na mulher em casa, mas não levanta para bater palma para Deus”, apelava.

Ele não desistia. “Quando eu entrava nos ônibus pra assaltar e mandava alguém levantar o braço, aí num instante todo mundo levantava. Hoje eu peço pra levantar o braço pra Deus e ninguém levanta!” Ele se aproximava de algumas pessoas e se dirigia diretamente a elas: “Levanta a mão. Bate palma. Bate palma quem acha que Deus merece!” Uma jovem que estava ao meu lado já levantava suas mãos e batia palma. Na frente, outra. Muitas pessoas (mulheres) já batiam palmas e respondiam, quando indagadas, “Amém!”, num coral triste.

Quando eu olhava ao redor, no rosto das pessoas, sentia que elas carregavam uma aflição típica do medo. Notei que elas não sabiam exatamente por que batiam palmas e levantavam suas mãos. “Eu vou encerrar...” Tranquilizei-me, mas só por uns segundos. Ele voltava a falar e contar detalhes da sua vida, dos crimes cometidos, de sua vivência na penitenciária atualmente, que retornaria para lá no final da tarde e que os outros presos sempre lhe pede para levar alguma coisa, uma pasta de dente (creme dental), um biscoito... “Eu vou encerrar, mas antes...” E voltava a contar como assaltava os celulares das pessoas, ironizava com alguém que aparentemente estava dormindo e não prestava atenção ao seu culto. “Quando eu entrava e alguém tava dormindo, eu ia assaltando e quando a tia acordava e dizia ‘o que é isso? ’, eu respondia: isso é um assalto tia e eu tava esperando a senhora acordar pra pegar seu celular”. Algumas pessoas se entreolhavam; outras riam cautelosamente.

Eu anotava, pacientemente, cada palavra, em inglês, para evitar que a fiel ao meu lado pudesse me entregar. Não era bem medo, mas eu estava meio assustado, surpreso com a situação. Cheguei a vacilar sobre meu direito de escolha, ao me constranger por não estar levantando os braços, muito menos aplaudindo fosse lá o que for.

Ele, para não perder a prática, começou a pedir dinheiro, mas dessa vez sem arma. Melhor dizendo, pedia ajuda para levar para os demais detentos, usando como “arma” apenas as palavras. Uma ou duas pessoas deram algumas moedas. “É verdade. Antes eu entrava, apontava uma arma e todo mundo logo me dava o dinheiro”. Naquele momento, pensei ser prudente eu pegar minha carteira e entregar algum dinheiro. Hesitei. “A Bíblia diz não à violência e sim ao amor”. Aumentaram as doações. “O Senhor é meu pastor e nada me faltará, amém?”, perguntou. “Amém, gente?", gritou. “Amém”, respondeu, prontamente, o coral.

Ainda não era tudo. Meu sono já havia ido embora, totalmente, o que é difícil de acontecer. Eu já havia guardado meu bloco de anotações, certo de que as arrecadações em nome de Deus para ajudar os irmãos da cadeia eram o suficiente e o último capítulo da história. “Para finalizar...”, repetia, sem mudar uma só palavra. “Você vai tocar no ombro do irmão que está do seu lado...” Eu, na hora, exclamei uma só palavra, para mim mesmo, mas que, infelizmente, terei que aqui censurá-la. Não acreditei na cena. “Espero que essa menina não toque em mim”, pensei. Em vão! Quando ele terminou de proferir a mensagem a ser passada através do toque, ela já estava ultrapassando o espaço que me é de direito do meu assento, colocando sua mão sobre meu ombro. Não consigo pensar numa só palavra para descrever a cena, tamanha a unicidade do ato, para não dizer outra coisa. Mantive os olhos nas minhas anotações e consenti despretensiosamente com alguma coisa que ela me disse, para não ser de todo grosseiro. Talvez ela não tivesse escolha naquele momento. Ele, finalmente, desceu e desapareceu. Fiquei com a impressão de ter acabado de passar por um assalto, à mão armada.

Eu acredito em Deus, mas o caminho, definitivamente, não é esse!

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. A criatividade do povo não tem limites. Sim, é menos constrangedor que desagradável este tipo de atitude. Pior é a carência ou falta de perspectivas das pessoas que PRECISAM crer em algo, nem que seja nestes profetas da coação.

    Texto MARA.

    =))

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  3. Olá Josevaldo. Fiquei muito feliz com teu convite para ler este texto e quero te dar os parabéns. Seu texto é muito bom, rico em detalhes e com a utilização de temas religosos dentro do contexto, isso na medida certa.
    Eu já presenciei esta pessoa que "prega" nos ônibus e você conseguiu descrever as minhas sensações frente à mesma situação.

    SÓ FALTOU UM DETALHE: A Voz rouca, no estilo filme de terror, que ele faz, que amedronta mais ainda.

    Sucesso sempre!

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  4. Nossa que locura hem!
    No trânsito de Salvador, em horário de trabalho entao, tentar dormir um poquinho enquanto vai p/ o trabalho, e nao conseguir porque certa pessoa tá incomodando.O pior, pregando a palavra de Deus pra fins lucrativos, que horror. E as pessoas levantando braço pra de certa forma fazer a "vontade" dessa pessoa,
    -Eu vô levantar o braço pra ver se ele sai logo desse Ônibus!
    Eu Particularmente acho que a fé que remove montanhas nao é a mesma que arrecada moedas, acho na verdade uma falta de respeito, esse povo sair por ai usando o nome de Deus em vão!
    Mais bem que eu queria saber qual palavra você censurou, rsrsr.
    Ô JOSESC sei que o caso aqui é serio, mais bem que eu mim divertir lendo esse texto, rsrs imaginado sua cara, querendo dormir[...]
    Texto ÒTIMO!

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